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sexta-feira, 27 de maio de 2011

SÍNDROME DE LENNOX-GASTAUT COM INÍCIO NA VIDA ADULTA?

Introdução
Samuel Auguste Tissot, médico suiço, descreveu em seu Traité de L'épilepsie publicado em 1770, o caso de um menino de 11 anos de idade cuja epilepsia havia iniciado aos 18 meses de vida, sendo o seu quadro clínico caracterizado por abalos mioclônicos, drop attacks e períodos de imobilidade fugaz. Tais achados foram acompanhados de deterioração mental progressiva10. Esta descrição pode ser considerada como o primeiro relato da condição conhecida nos dias atuais pelo epônimo de síndrome de Lennox-Gastaut (SLG). Entre os anos 40-60, Lennox percebeu pioneiramente a correlação clínico-eletroencefalográfica entre o que havia anteriormente chamado de variante de pequeno mal (complexos ponta-onda lentos) e uma enfermidade peculiar da infância caracterizada por crises epilépticas de diferentes tipos e deterioração cognitiva, cujo prognóstico era sombrio11-13. Posteriormente, os estudos de Gastaut e colaboradores contribuiram para o estabelecimento dos critérios clínicos e do eletroencefalograma (EEG) típico desta entidade: início na primeira década de vida, na grande maioria se dará entre 1 e 6 anos de idade; múltiplos tipos de crises epilépticas (crises tipo drop attacks embora não patognomônicas são altamente sugestivas); anormalidades eletroencefalográficas características; deterioração mental exibida senão por todos, pela maioria dos seus sofredores7. A síndrome foi definitivamente reconhecida durante o XIV European Meeting on EEG Information realizado em setembro de 1966 e, neste evento, por sugestão da filha de Lennox, o epônimo Lennox-Gastaut recebeu ampla aceitação. Gastaut sugere que a prevalência da síndrome seja em torno de 6% de todas as epilepsias e corresponda aproximadamente a 10% das epilepsias vistas na infância8. Todavia, desde o seu reconhecimento como condição ímpar, este diagnóstico tem sido utilizado com freqüência para abrigar quadros nosológicos distintos tendo em comum os complexos ponta-onda lentos. Em decorrência disso, esforços tem sido dirigidos para a individualização clínica das epilepsias que apesar de apresentarem alterações eletrográficas similares, representam condições com prognósticos diferentes1,4,6,16. Paralela a esta discussão, síndromes epilépticas idênticas tem sido descritas iniciando-se em pacientes adultos2,3,14,19,20.
Com o intuito de contribuir para o debate em torno deste fascinante e controverso tema, este registro trata de um caso que preenche todos os requisitos para o diagnóstico da SLG, exceto em relação a idade: o paciente iniciou sua síndrome epiléptica aos 20 anos de idade, poucos dias após ter sofrido acidente com trauma crânio-encefálico (TCE).
OBSERVAÇÃO
IT, paciente de 28 anos de idade, branco, destro, marinheiro aposentado, foi encaminhado para avaliação por epilepsia refratária e para o esclarecimento de frequentes estados confusionais agudos. Diagnóstico de psicose epiléptica havia sido feito no passado para justificar as alterações periódicas de comportamento apresentadas pelo paciente, propiciando um ensaio com drogas neurolépticas. Este, além de desencadear parkinsonismo iatrogênico, exacerbou suas crises epilépticas. Nesses episódios, que se iniciavam bruscamente, IT assumia condutas bizarras, confabulava, e confuso deambulava a esmo. Tais alterações podiam prolongar-se por alguns minutos, várias horas, algumas vezes até dias, sendo o paciente totalmente incapaz para recordar delas após a recuperação da consciência. Esta geralmente reaparecia após uma crise generalizada tônico-clônica ou depois de um período de sono. Suas crises epilépticas iniciaram-se duas semanas após TCE grave acontecido aos 20 anos de idade, ocasião em que permaneceu inconsciente por três dias. Desde sua primeira crise, tipo tônico-clônica, ele vem tendo ataques incontroláveis de tipos diferentes. Clinicamente suas crises foram classificadas como: generalizadas tônico-clônicas (ao menos um episódio/mês); ausências atípicas (2 a 5 episódios/dia) e drop attacks (quase diariamente). Estes últimos iniciaram-se aproximadamente três anos após a primeira crise e representam no momento o componente mais agressivo da sua síndrome epiléptica. Além disso, desde há cerca de dois anos começou a apresentar regularmente os episódios confusionais descritos acima. Sua história mórbida prévia ao TCE, cronologicamente correlacionado com o aparecimento da epilepsia, era inexpressiva e entre seus familiares não havia história de enfermidade neurológica. No passado tinha utilizado carbamazepina, clonazepam, fenitoína, fenobarbital, primidona e valproato de sódio; drogas empregadas em regime de monoterapia ou em distintas combinações, sem qualquer benefício, exceto por melhora inicial quando da introdução de valproato de sódio. Todavia, desenvolveu posteriormente efeitos colaterais importantes que levaram a supressão desta droga. Na admissão, exames clínico geral e neurológico não exibiam anormalidades. Estudos complementares rotineiros de sangue (hemograma, glicemia, creatinina, VHS, transaminases, sódio, cálcio e potássio) foram normais. Tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética de crânio (RM) foram normais. Testes neuropsicológicos evidenciavam franca disfunção cognitiva, com significativa discrepância de QI quando comparado a estimativa pré-mórbida. Alterações eletrográficas eram proeminentes, com incursões de ondas theta e delta no ritmo de base; complexos ponta-onda lentos (2Hz) sendo identificados; surtos de ondas rápidas, sincrônicas e bilaterais, mais acentuadas em regiões frontais, foram vistas freqüentemente durante o sono. A hiper-ventilação não desencadeou complexos ponta-onda lentos e a foto estimulação intermitente não trouxe resposta. Com o auxílio da vídeo-telemetria foi possível identificar que seus drop attacks eram a expressão de crises tônicas, atônicas e, mais raramente mioclônicas. Durante o período de hospitalização, IT apresentou dois episódios confusionais prolongados, similares aos descritos quando da sua internação. Em ambas as ocasiões, O EEG mostrava atividade ictal generalizada e o uso de diazepam endovenoso levou a pronta recuperação da consciência, melhora esta que poderia ser correlacionada com acentuada mudança do padrão eletrográfico. Consequentemente, diagnóstico de status epilepticus não convulsivo foi feito e aplicado retrospectivamente para explicar as alterações comportamentais episódicas que o paciente teve no passado. Uma tentativa com vigabatrina resultou em piora acentuada do quadro, obrigando sua supressão poucos dias após a sua introdução. Um melhor controle da sua condição foi obtido com a combinação de carbamazepina, fenitoína e clobazam; resultando em abolição dos status epilepticus e redução das crises tônico-clônicas e das ausências atípicas. Entretanto, persiste apresentando drop attacks semanais e uma lenta e gradativa deterioração das funções cognitivas têm sido detectadas ao longo do seguimento ambulatorial.
Comentários
A entidade identificada nos dias de hoje pelo epônimo de Lennox-Gastaut pode ser sumarizada como segue:
1.      Repetição freqüente de diferentes tipos de crises epilépticas, geralmente motoras, sendo tipicamente diagnosticada na infância. A imensa maioria dos seus sofredores inicia suas crises entre 1 e 6 anos de idade e o começo na infância é, segundo a maioria dos autores, um dos principais critérios para o seu diagnóstico7,13,15. Os pacientes em sua maior parte são ou se tornarão deficientes mentais.
  1. As crises, comumente refratárias a terapêutica com qualquer das DAEs disponíveis, devem incluir ao menos duas dos seguintes tipos: tônicas, atônicas, mioclônicas e ausências atípicas. Crises epilépticas tipo drop attacks (crises astáticas), embora não patognomônicas são consideradas sugestivas desta condição e podem ser provocadas por componentes atônicos, tônicos, mioclônicos ou espasmos em flexão18. Uma identificação precisa de qual destes componentes é o responsável pelas quedas num paciente em particular é frequentemente difícil e poderá requerer sua monitorização intensiva. Porém, espasmos flexores e crises tônicas parecem ser mais preponderantes como causadores de drop attacks epilépticos em pacientes com a SLG9,18. Status epilepticus convulsivos e não convulsivos são intercorrências frequentes na evolução da SLG. Há inclusive a descrição de 5 tipos distintos de status apresentados por esses peculiares pacientes.
  2. O EEG deve exibir complexos ponta-onda lentos (menos que 3/Seg) que poderão ser generalizados, lateralizados e mais raramente focais. Além disso, a identificação de surtos de ondas rápidas (10-25/seg), sincrônicas, bilaterais e repetitivas durante o sono, outrora descritas como descargas de grande mal, embora não exclusiva desta condição é bastante sugestiva da mesma. Apesar da análise isolada do EEG não ser diagnóstica para nada, cabe realçar que os achados combinados de ponta-onda lenta e descargas difusas de poli-pontas rápidas e bilaterais, com predomínio frontal e proeminentes durante o sono, são alterações marcantemente sugestivas da SLG.
  3. Sua etiologia permanece uma incógnita; contudo, em certo número de pacientes será possível identificar um insulto ou lesão cerebral prévia ao início das crises. Estudos anatomopatológicos tem fracassado em demonstrar um defeito estrutural causal na SLG e um distúrbio metabólico ainda incógnito tem sido sugerido como desencadeante do problema7,21.
Excetuando o critério da idade, o paciente IT preenche todos os requisitos clínicos e de EEG para o diagnóstico da SLG. Sua síndrome epiléptica iniciou aos 20 anos de idade e apresenta como características marcantes a combinação de drop attacks frequentes, ausências atípicas e crises generalizadas tônico-clônicas. Além disso, tinha episódios de status epilepticus não convulsivo e testes neuropsicológicos seriados demonstravam deterioração gradativa das funções cognitivas. As alterações eletrográficas observadas igualmente suportam esta possibilidade diagnóstica.
Drop attacks epilépticos possuem vasta sinonímia e são classificados como crises generalizadas, e isso parece ser verdade em nosso paciente. Tais crises são geralmente associadas a SLG; entretanto, poderão ocasionalmente ser a expressão de outras síndromes epilépticas e terem origem focal19. Esta é muito provavelmente a mais dramática das crises de epilepsia, responsável por ferimentos graves e independendo da síndrome epiléptica onde está inserida, tem como regra ser refratária a qualquer tratamento; conforme notado neste paciente.
Curiosamente a revisão da literatura mostra a existência de pequeno número de pacientes que como no presente caso, apesar de terem todas as exigências para o diagnóstico de SLG, iniciaram suas crises durante a adolescência ou já adultos2,3,14,19,20. De modo semelhante àqueles pacientes que iniciam as crises durante a infância, estes pacientes também têm sua evolução marcada por frequentes episódios de status epilepticus convulsivos e não convulsivos, como exibido pelo paciente IT. Aliás, o presente caso serve também para ilustrar o quão perigoso é o rótulo de "psicose epiléptica"; pois o não reconhecimento de status epilepticus não convulsivo, uma condição que parece ser bem mais frequente do que se acreditava até recentemente, poderá conduzir ao diagnóstico de enfermidade psiquiátrica com catastróficas consequências para suas vítimas.
Em nosso paciente, assim como naqueles com SLG-like iniciando na vida adulta, refratariedade ao tratamento tem sido a regra, tal como visto em típicos pacientes com a SLG. Bauer et al., externaram que... Os pacientes com SLG-like iniciando na vida adulta têm deterioração moderada, principalmente quando comparados as clássicas SLG da infância3. Isto não se aplica ao nosso caso, no qual óbvio comprometimento progressivo das funções cognitivas pode ser constatado. Por outro lado, estudos complementares apropriados (TC e RM) não demonstraram anormalidades e assim, um fator metabólico ainda incógnito gerado pelo insulto cerebral representado pelo TCE, poderia ser aventado para justificar o quadro apresentado por nosso paciente.
Finalizando, gostaríamos de observar que uma síndrome, por definição, não é uma doença; frequentemente tem seus limites imprecisos e seus componentes poderão sofrer considerável variação. Assim, estabelecer critérios rígidos para o seu diagnóstico poderá resultar em controvérsia. Porém, caso estes critérios sejam relaxados abusivamente, síndromes classicamente descritas poderão ser transformadas em uma espécie de "saco de gatos", tamanha a heterogeneidade das condições que poderão ser abrigadas sob um mesmo nome. Em se tratando da SLG é mister reconhecer os vários indícios de que este rótulo está sendo equivocadamente utilizado para abrigar condições epilépticas distintas. Parece ser imperativo, até mesmo para a preservação de SLG como entidade nosológica ímpar, que suas fronteiras sejam delimitadas. Para tal, embora potencialmente polêmica, a individualização clínica das várias condições epilépticas que apesar de alterações eletrográficas similares possuem prognósticos diferentes é uma necessidade elementar. Além disso, deve a idade do início das crises ser mantida como um dos critérios diagnósticos desta síndrome? Devemos continuar chamando a condição que se inicia na vida adulta, indistinguível clínica e eletrograficamente da SLG típica da infância, de SLG-like? Desde que refratariedade ao tratamento é a regra observada em ambos os grupos, estas questões podem parecer irrelevantes; entretanto, caso estes pacientes com SLG-like sejam aceitos como legítimos portadores da SLG clássica, muitos conceitos teriam de ser revistos. Principiando pelo nome dado por Gastaut e colaboradores em 66... Encefalopatia epiléptica da infância com ponta-onda difusa5, passando pelos mecanismos fisiopatogênicos propostos... Esta afecção (SLG) é o produto de uma reação do cérebro infantil a alguma agressão cerebral crônica5, e assim por diante. Isto por si só é ilustrativo da importância desta discussão.
Agradecimentos
Este artigo foi financiado pela National Society for Epilepsy of United Kingdom, Londres/Inglaterra, entidade a qual os autores gostariam de expressar público reconhecimento e gratidão. O Dr. David Fish foi fundamental na interpretação das alterações eletrográficas.
Referências 
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FONTE:  www.neurologia.ufsc.br
Dr. Paulo Cesar Trevisol-Bittencourt
Centro de Estudos do HU/UFSC
88040 - 970 Florianópolis/SC
 

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