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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

HOMENAGEM A PAULO FREIRE

APRENDER A LER O MUNDO:

Adaptação do Método Paulo Freire na alfabetização de crianças


                         Olivia S.L.Leite
José B. Duarte[1]
                            
Aprender a ler e escrever é, antes de tudo, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, localizar-se no espaço social mais amplo, a partir da linguagem. O homem está no mundo e com o mundo (FREIRE, 1979:31) − produzindo-o e transformando-o, preenchendo com a cultura os espaços geográficos e os tempos históricos. Ele se identifica com sua própria ação: objetiva o tempo, temporaliza-se, faz-se homem-história. Por isso, alfabetizar, para Freire, é valorizar a sabedoria resultante das experiências culturais locais do alfabetizando, possibilitando que ele avance para além de suas crenças em torno de si no mundo e de si com o mundo.                                              
Infelizmente, em pleno século XXI, ainda ocorrem grandes defasagens na alfabetização. Alguns alunos não conseguem obter sucesso no decorrer da 1ª série, necessitando de uma (re)alfabetização, antes de iniciar o estudo dos conteúdos da 2ª série. Todos os anos a história se repete: após uma breve sondagem, nos deparamos com a mesma problemática da defasagem na aprendizagem do ano anterior. Este fato, presente na maioria das escolas brasileiras, além de preocupante, causa um sério transtorno na seqüência do ensino fundamental.
Orientando e acompanhando o desenvolvimento de diversas turmas de 2ª série, como supervisora pedagógica, Olívia Leite, co-autora deste artigo, percebeu que as aulas de recuperação eram apenas uma continuidade das aulas regulares, ministradas em sala de aula. Na tentativa de buscar soluções para alfabetizar crianças com dificuldades de aprendizagem, desenvolveu uma pesquisa-ação com base na pedagogia crítica de Paulo Freire, a qual denomina de Adaptação do Método Paulo Freire para Crianças (AMPF). Os objetivos foram propostos com a intenção de analisar como acontecem as relações de crianças pouco escolarizadas com o mundo da leitura e da escrita, porém, detentoras da leitura de mundo, à luz da pedagogia freireana e suas adaptações. Para o enquadramento teórico e metodógico foi apoiada por José B. Duarte, que também colaborou no presente artigo.
Nas práticas de produção escrita de texto, segundo a “Adaptação do Método Paulo Freire”, as atividades são sempre precedidas por momentos de intensa troca e de diálogos entre educandos e educador(a). Desta forma, as crianças vivenciam situações de interação verbal, constituem-se sujeitos na relação apropriando-se e recriando a fala do outro. Este exercício da oralidade, segundo Freire e Macedo (1994), é fundamental na prática da alfabetização, pois a oralidade e a escrita fazem parte de um processo contínuo, apesar de possuírem características textuais próprias. Pode-se contar oralmente uma história, usando uma estrutura textual muito próxima ao texto escrito em língua padrão. Ao mesmo tempo, nessas situações, os alunos desenvolvem a competência comunicativa, ou seja, a capacidade de compreender e produzir mensagens coerentes.
Outro ponto característico do processo de alfabetização numa perspectiva crítica refere-se ao tema das produções. Paulo Freire reflete, em suas obras, sobre a importância da tematização da realidade vivida para o desenvolvimento da consciência crítica. Neste sentido, pensando o universo infantil, ao qual se direciona o objetivo desta pesquisa, e relembrando as dificuldades apresentadas na primeira série, delimitamos o universo da pesquisa a uma Escola Pública Municipal, localizada na periferia do Município de Campo Largo, a quinze quilômetros de Curitiba, a qual denominamos de Escola Y. A mesma funcionava de pré (educação infantil) a 4ª série do ensino fundamental, com 218 alunos matriculados, sendo que 47 freqüentavam a 2ª série, divididos em duas turmas: A e B. Dessas turmas, foram selecionados 12 alunos[2] para as aulas especiais, que denominamos de (re)alfabetização, divididas em 4 horas diárias, perfazendo o total de 48 horas de “aulas especiais.”
Os dados foram obtidos por meio da intervenção direta da educadora com os educandos, no transcurso de um processo de (re)alfabetização, utilizando como instrumento de ação a AMPF para crianças, respeitando e valorizando a sabedoria resultante de suas experiências culturais locais, que, segundo Freire, é o ponto de partida para a construção do conhecimento do mundo. Em suas obras, repetiu incansavelmente que:

“(...) não podemos deixar de lado, desprezado, como algo imprestável, o que educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos a centros de educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática social. Sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros” (FREIRE, 1993: 86).

Em seu livro Educação como Prática de Liberdade (2002, 26ª Edição), Freire propõe a elaboração e execução prática do Método em cinco fases. A Adaptação do Método Paulo Freire diverge do original apenas no processo de elaboração das fases. Decidimos aglutinar a quarta fase, que “consiste na elaboração de fichas-roteiro”, com a quinta fase, que “consiste na feitura das fichas com a decomposição das famílias fonêmicas”.
No método para adultos, essas fichas-roteiro “servem de simples sugestões para os coordenadores, nunca uma prescrição rígida para ser obedecida” (FREIRE, 1994: 76). Assim, unindo as duas últimas fases, acreditamos que facilitará ao educador a compreensão e aplicação da adaptação do método para crianças. Consideramos, também, que cada educador tem o dever de preparar seu material de trabalho, seguindo o método, pelo simples fato de ser o coordenador/animador/professor e educador a mesma pessoa. Lembramos, ainda, que a construção das fichas de decomposição das famílias fonêmicas fazem parte do processo de execução do método. Por isso, optamos pela organização de apenas quatro fases:

1ª) Levantamento do universo vocabular
 2ª) Escolha das palavras selecionadas do universo vocabular pesquisado.

Como no Método original, a adaptação também obedece aos mesmos critérios para selecionar as palavras geradoras:
a.      o da riqueza fonêmica;
b.       o das dificuldades fonéticas (as palavras escolhidas devem responder às dificuldades fonéticas da língua, colocadas numa seqüência que vá gradativamente das menores às maiores dificuldades);
c.      o de teor pragmático da palavra, que implica numa pluralidade de engajamento da palavra numa dada realidade social,cultural, política etc.

3ª) Criação de situações existenciais típicas do grupo com quem se vai trabalhar.
4ª) Confecção de fichas com a decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores.

Como já mencionamos, esta fase engloba a elaboração de fichas-roteiro, a confecção de fichas com as palavras geradoras e com a decomposição das famílias fonêmicas dos vocábulos geradores. O material pode ser confeccionado em cartazes, slides, transparências etc., conforme os recursos existentes no local de trabalho e a própria condição financeira do educador, para investir nesses materiais.
O método aponta regras de fazer, mas em coisa alguma ele deve impor formas únicas, formas sobre como fazer. De uma situação para outra, de um tempo para outro, sempre é possível criar sobre o método, inovar instrumentos e procedimentos de trabalho. Afinal, cada grupo de educandos faz parte de uma nova realidade, com suas situações comuns a serem descobertas e trabalhadas, lembrando sempre que ao procurar as palavras geradoras, o trabalho de descobri-las é, ele mesmo, um momento gerador, um momento de trabalho comum de que as outras etapas do método serão outras situações comuns de uma mesma descoberta aprofundada.
Em nossos estudos, compreendemos que a aprendizagem sobre a qual estamos pesquisando não é meramente incidental, ou seja, passageira. Não se trata de adotar um método simplesmente para contestar outro. Ao tomarmos a iniciativa de adaptá-lo, enfatizamos um princípio considerado por Freire (2002) como essencial: “a alfabetização e a conscientização jamais se separam” (p 14). Diante desta afirmação, destacamos a participação livre e crítica dos educandos no sentido de liberdade com afetividade. Por isso, a avaliação da AMPF exige que consigamos olhar para a aprendizagem permanentemente. Para nós, não há um tempo exato de avaliação. Ela é contínua, processual, diagnóstica, e só tem sentido se for para melhorar e qualificar as relações com o conhecimento e com as pessoas, ou seja, construir conhecimento, valores e atitudes, com base na experiência comum.
Por isso, durante as aulas de alfabetização, ou (re)alfabetização, não há qualquer nota ou conceitos atribuídos ao desempenho do aluno; apenas a consideração máxima pelo esforço conjunto – entre educador/educando - em busca de um lugar, na própria sala de aula, onde o aluno jamais seja discriminado por não saber ler nem escrever, igual aos seus “coleguinhas” de turma, que acompanham o ensino regular. Cada momento em comum se traduz na construção e (re)construção de sua própria história, produzida pela reflexão-ação-reflexão, face à realidade.
As crianças, em qualquer idade, gostam de ser ouvidas, de falar sobre os acontecimentos mais recentes e seus problemas existenciais. Ao professor, cabe explorar a pluralidade cultural e respeitar a pluralidade das vozes, os diversos saberes e opiniões, porém, sem deixar de orientar e refletir criticamente, objetivando a aquisição de novas interpretações, novas leituras de mundo. E foi assim que iniciamos o trabalho de (re)alfabetização: com as apresentações individuais dos alunos, isto é, dos “alfabetizandos”. Eles foram informados sobre o objetivo do trabalho e a importância da colaboração de todos para que se beneficiassem desses encontros. A proposta era torná-los capazes de ler e escrever igual aos coleguinhas de turma, ou, talvez, melhor ainda, porque logo eles perceberiam como é fácil ler e escrever, quando sabemos o real significado do que estamos dialogando.
O interesse foi geral. Em clima de esperança, conversamos informalmente sobre os problemas que o grupo enfrenta na escola e, durante a apresentação individual, cada educando falou um pouco sobre a constituição de sua família. A educadora dirigiu o debate com o objetivo de verificar dados, que viessem contribuir e gerar soluções para as dificuldades de aprendizagem, comuns ao grupo, e, nesse diálogo, levantar o universo vocabular dos educandos, para iniciar o processo de (re)alfabetização, utilizando a Adaptação do Método Paulo Freire (AMPF).
Aplicou-se um roteiro pré-elaborado pela educadora, contendo cinco questões, relativas a vida familiar dos educandos. E de acordo com o mesmo, após o intervalo do recreio [horário do lanche], conversamos sobre o que eles mais gostam de fazer em casa e na escola. Surgiram as mais diversas opções, mas “soltar pipa” foi unanimidade.
A turma contou que era “muito legal” soltar pipas com cerol. Eles gostavam é de derrubar as outras pipas, por isso fabricavam cerol em casa. Explicaram que, faziam o cerol, “pegando cacos de vidro ou garrafas vazias, que procuravam no lixo, colocavam em uma meia velha, dentro de uma lata de leite ou azeite, vazia, e socavam com uma pedra até ele ficar moído. Depois, juntavam cola branca e misturavam bem, e, então, passavam com as mãos, sem luvas, no barbante bem esticado e na rabiola das pipas, e esperavam secar para poder brincar”. Eles disseram que “quando o cerol está molhado, não tem perigo de cortar a mão”.
O debate foi direcionado para os perigos de soltar pipa em qualquer lugar. Mesmo sendo alertados, responderam que não se importam se tem fio de luz ou não. “É até melhor, porque a pipa fica enroscada e a gente pega”.“Se a pipa cair no chão, muito longe, os piás pegam antes da gente”. A educadora insistiu na reflexão sobre os perigos da energia elétrica e os locais menos perigosos para brincar com pipas. Quatro crianças “achavam o máximo usar o cerol para cortar as pessoas“. Lembramos de vários fatos noticiados pela imprensa, mas foi impressionante a frieza e a falta de conscientização dessas crianças sobre um assunto tão sério, causador de uma série de problemas, inclusive, mortes por degolamento.
Continuando as histórias de vida, disseram que perto do local onde gostavam de brincar está o rio Passaúna. Um dos alunos, o Juca, gostava muito de contar histórias de assombração e lendas que circulam pela cidade. A falta de concentração deste educando era notória. Durante todo o tempo, que trabalhamos juntos, houve muita dificuldade nos momentos em que precisava prestar a atenção. A impressão era que ele vivia viajando em seus pensamentos, nas lembranças que atormentavam sua mente infantil. Com ele, era fundamental falar claramente e várias vezes a mesma coisa, olhando firme nos seus olhos, enquanto pronunciava seu nome repetidamente.
Percebemos, pelos depoimentos nos momentos de discussão, que, além de pipas voando bem alto, essas crianças também pensavam em sexo e bebidas. Outras crianças se manifestaram sobre o uso de álcool na família e falaram sobre sexo e pornografia, com a naturalidade de quem fala sobre brinquedos, ou, de qualquer assunto comum na infância. Outro fato que chamou a atenção da educadora foi o uso dos palavrões. Como eles falavam o tempo todo, presumiu-se que fazia parte do vocabulário deles e da família. Existia uma certa agressão dissimulada em alguns e escancarada em outros. No geral, não tinham respeito pelos colegas de turma e partiam para a briga com a maior facilidade. Por essas reflexões e informações, coletadas no nosso “círculo de cultura”, pode-se ter uma idéia de quanto foi difícil contê-los no minúsculo espaço que ocupamos[3]. Não dava para parar um segundo de questionar, chamar a atenção e solicitar que ouvissem os colegas para que eles também fossem ouvidos. A participação foi bastante intensa.
Os momentos de debate foram importantíssimos na execução deste trabalho. Aos poucos, foi sendo explorada a história de vida de cada um. Todos os momentos foram bem aproveitados com reflexões temáticas em torno do grupo, ou geração de palavras, visando enriquecer o vocabulário dos educandos. Houve também uma visível mudança comportamental. Os valores morais foram sendo assimilados, aos poucos, os palavrões foram coibidos e a convivência ocorreu pacífica até o final do trabalho. Na execução da primeira fase da AMPF, o levantamento do universo vocabular, escolhemos como palavras geradoras os seguintes vocábulos: pipa, rabiola, cerol, cola, cortar, boneca, legal, mato, campo, cachoeira, roubar, Passaúna, cobra, veneno, vidro, martelo, fino, grosso, pedra, molhado, perigoso, eletricidade, endurecer, brincar, continha e pião.
Na segunda fase, conforme ficou estabelecido no primeiro encontro, antes do levantamento do universo vocabular, lembramos que a alfabetização deveria partir do interesse geral das crianças, isto é, do conhecimento específico daquele grupo. Então, fizemos uma votação para identificar qual é a atividade que os educandos mais gostavam de fazer. E, como prioridade, confirmamos que é exatamente soltar pipas. Assim, apresentamos a palavra e o objeto que a nomeia, da seguinte forma: ficou combinado entre educadora e alfabetizandos que, no dia seguinte, todos poderiam trazer suas pipas para a escola. Se o tempo estivesse bom, isto é, se não chovesse, nós iríamos até o campinho, ao lado da escola, para soltar pipas, durante vinte minutos. Depois, no espaço de trinta minutos, cada um iria apresentar sua pipa aos companheiros e explicar como ela foi feita: “qual o material utilizado; se alguém ajudou a adquirir os materiais ou a confeccionar, enfim, qualquer curiosidade que fizesse parte daquela pipa deveria ser comentada”. Para nossa sorte o dia amanheceu lindo e pudemos cumprir com o planejamento do dia anterior. Ao encerrar as apresentações veio o horário do recreio e todos foram lanchar. Depois, já em sala de aula, voltamos à análise da palavra pipa. Verificamos que ela possui apenas uma família fonêmica, Como não tínhamos quadro, usamos giz branco e colorido num pedaço de papel Kraft. Ficou assim:
pipa
pi-pa
pa – pe – pe – pi – po – pu

A seguir, veio a rabiola, que faz parte da pipa:

rabiola
ra – bi – o – la
ra – re – ri – ro – ru
ba – be – bi – bo – bu
a – e – i – o – u
la – le – li – lo – lu

A palavra pipa possui somente uma família e a rabiola tem quatro famílias. Juntando todas as famílias, fizemos “casamentos” entre elas e nasceram as seguintes palavras: bala, rio, rua, rei, balão, boi, aura, aula, bolo, robô, bibelô, beira, raio, bebê, loura, belo, leira e rabo. Com estas palavras a turma construiu a primeira ficha de “palavras descobertas”, porém, sem obedecer a ordem alfabética, apenas seguindo a seqüência de suas construções.

Palavras descobertas
bala , rio, rua, balão, boi, aura, aula, bolo, robô, bibelô, beira, raio, bebê, loura, belo, leira, rabo, rei...[4]

A terceira palavra a ser apresentada foi cortar, porque os meninos continuavam insistindo com a história de “achar legal” cortar a pipa dos outros e derrubá-las no chão. Discutimos sobre o porquê parecia ser tão legal derrubar a pipa dos outros, e se eles gostavam quando a derrota era deles, uma vez que, quando suas pipas eram cortadas, acabava a brincadeira. Em algumas situações, o que é bom para nós, também pode ser bom para os outros. Nessa brincadeira de cortar a pipa do outro, é tão ruim para eles quanto seria para nós. Se no dia em que soltamos pipas na escola alguma delas tivesse sido cortada por alguém, que não estivesse conosco no grupo, a brincadeira e as apresentações não teriam a mínima graça. Aproveitamos para retomar a questão dos perigos que envolvem a fabricação e o uso do cerol.

A palavra cortar foi apresentada, sem o objeto que a nomeia, pois todos sabem o significado de cortar, mesmo que seja a pipa dos outros meninos.

cortar
car – --- - --- - cor – cur
     tar – ter –tir – tor – tur

Lembramos dos sons do “ca, co, cu” e do “ce, ci”, que formam outras palavras. Observamos que para escrever cortar há necessidade de acrescentar um “r” no final de cada sílaba. Escrevemos e depois tiramos o “r” na primeira e na segunda sílaba, visando verificar a diferença no significado e na pronúncia dos vocábulos (cota, cotar, corta, cortar). Lemos e relemos a palavra e as respectivas famílias. Pensamos em diversas palavras que poderiam ser escritas, usando pedacinhos das mesmas famílias para construir a ficha da descoberta. Como eles encontraram dificuldade para compor novas palavras apenas com as duas últimas famílias, a educadora problematizou a idéia de rever as aulas anteriores e buscar todas as famílias já estudadas[5]. Os alfabetizandos concordaram imediatamente e, assim, com maior facilidade, construímos mais uma ficha de “palavras descobertas”.

Famílias reunidas:
       pa – pe – pe – pi – po – po
       ra – re – ri – ro – ru
       ba – be – bi – bo – bu
       a – e – i – o – u
       la – le – li – lo – lu
       car – --- - --- - cor – cur
       tar – ter –tir – tor – tur

 

Palavras descobertas

Laura (o), boina, pinto, pintado, rato, pia, para, ela (e), papo, rei, Paulo (a), peito, pai, lobo, relógio, cortar, caco, corpo, tartaruga, brinco, Rodrigo, integração, grata (o), grade, corda, pato, parto, terra, tira, tirar, torta, carro, curto (a), bela, babeiro, bala, barata (o), rebite, turista, pipoca, pipocar, tiara, loira, lutar, partir...


Antes de compor o quadro de “palavras descobertas”, fizemos a leitura das famílias, em todos as direções: para a direita, à esquerda, em diagonal, de baixo para cima e vice-versa. Depois, partimos para a escrita das palavras descoberta, sem preocupação com ordem alfabética, como deveria ser em todos os momentos de construção. A seguir, a educadora sugeriu ao grupo a construção de frases. Foi a maior dificuldade, pois alguns alfabetizandos teimavam em falar apenas uma palavra e pensavam estar construindo uma frase completa. Depois de exaustivos exemplos, finalmente a construção de frases seguiu seu rumo. Optamos, então, pela escolha de apenas cinco palavras para iniciar a escrita coletiva: pipa, grade, brinco, relógio e tartaruga. 

A pipa é grande.
A grade é um portão.
O brinco é para colocar na orelha.
O relógio serve para marcar as horas.

A tartaruga anda muito devagar.


Durante a construção das frases, os alfabetizandos foram escrevendo suas idéias, em papel almaço pautado. Notava-se um certo orgulho quando conseguiam escrever sozinhos, porque faziam questão de mostrar aos colegas o que haviam produzido. Quando eles não sabiam como escrever um vocábulo, perguntavam, e em seguida, mostravam à educadora se estava correto. O incentivo (elogio positivo) fez parte, permanentemente, de todo o processo de alfabetização. Encorajados, os alfabetizandos demonstraram boa vontade em produzir e queriam sempre mais. Essa atitude positiva motivou a continuidade das atividades.

Os educandos tiveram várias oportunidades para ampliação do vocabulário. Partimos da palavra pipa e chegamos a uma lista de palavras bastante complexas. Dentro deste espaço de tempo, mais precisamente doze dias, trabalhamos com várias possibilidades de escrita, porém, sempre respeitando o conhecimento básico do educando: explicando, demonstrando, pesquisando, dialogando constantemente, trazendo à baila suas histórias de vida, valores que precisavam ser revistos e substituídos por outros capazes de conduzi-los com dignidade e humanidade, rumo a um futuro melhor, mais promissor, construído com fé e amor no ser humano e na vida.

Conclusão

Os resultados mostraram que a aplicação da Adaptação do Método Paulo Freire, no processo de (re)alfabetização na 2ª série  é relevante, quando o educador tem como ponto de partida a história de vida e a leitura do mundo dos educandos. Analisando as hipóteses concernentes a esta pesquisa, verificamos que a aplicação da AMPF para crianças, durante doze dias, correspondentes a quarenta e oito horas de (re)alfabetização, apresentou um resultado bastante animador. Dos doze alfabetizandos selecionados, apenas três demonstraram maior dificuldade na aquisição da leitura e da escrita, ficando bem abaixo do rendimento esperado. Por meio da avaliação qualitativa, no decorrer do trabalho de (re)alfabetização, foi possível perceber que esses educandos precisam de um encaminhamento psicopedagógico e maior apoio da professora, da orientação educacional e da família. Os outros nove alunos são capazes de ler e escrever, necessitando, porém, de uma continuidade no processo de letramento, no sentido de respeitar os seus limites e o tempo para a aquisição dos conteúdos de 2ª série, lembrando sempre que acabaram de passar de alfabetizandos para alfabetizados.
Esta pesquisa-ação contribuiu para auxiliar na identificação de práticas pedagógicas referentes ao processo de alfabetização que, na certeza de estarem incompletas, permitam ao professor consciente a reflexão e a ação de criá-las e recriá-las a partir de sua realidade, potencializando-as como instrumentos para o desenvolvimento da consciência crítica de seus alunos. Pretendeu-se, portanto, através do que Freire (1985) denomina práxis - relação dialógica entre teoria e prática -, colaborar com professores das séries iniciais para uma reflexão crítica sobre suas ações e práticas educativas e, principalmente, sobre seus objetivos educacionais.
Ao término deste trabalho uma preocupação se estabeleceu: “haverá continuidade do processo educativo, iniciado com os doze alunos selecionados?”. A partir daquele momento eles poderiam ser considerados aptos para acompanhar uma 2ª série, porém, do ponto inicial. É importante lembrar que eles estavam transpondo da condição de “alfabetizandos” para “educandos”. Que o processo de alfabetização tomou lugar na vida deles, repentinamente, como uma novidade, totalmente fora dos parâmetros habituais e, que, pelo tradicionalismo da escola e a rigidez dos educadores, era uma situação bastante delicada.
De acordo com a ação pedagógica empregada, ratificamos que a concretização da alfabetização é mais eficiente quando o professor explora o universo vocabular do aluno, ou seja, a sua leitura de mundo. Quanto à hipótese de a metodologia utilizada pela escola influenciar diretamente na aquisição da leitura e da escrita, independente da leitura de mundo de cada sujeito, pudemos confirmar que, na Escola Y, nas aulas especiais, a história de vida de cada educando foi indiscutivelmente facilitadora de estímulos para a aprendizagem significativa. Afirmamos que a metodologia utilizada deve ser uma aliada à leitura de mundo, sem esquecer do diálogo, onde as trocas permeiam o lúdico e a aquisição das habilidades e competências necessárias à aprendizagem formal. 
Concordamos, ainda, com a hipótese de que a escola contribui positivamente para a aprendizagem significativa, na medida em que instrumentaliza os educandos, trabalhando a linguagem como um meio de construir significados. Para que o objetivo específico da AMPF fosse alcançado na íntegra, as professoras da 2ª série deveriam continuar a respeitar os limites e as necessidades de cada educando, tratando-os com a devida atenção, trabalhando a inclusão dos mesmos, permitindo assim a sua reintegração no seio da turma.


Bibliografia
FREIRE, P., (1979) Ação cultural para a liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
______. (1980) Educação como prática de liberdade. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
______. (1994) Cartas à Cristina. Notas de Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: Paz e Terra.
______. (2002). Educação como prática de liberdade. 26. ed. São Paulo: Paz e Terra.
FREIRE, P., GADOTTI, M., GUIMARÃES, S. (1985) Pedagogia: diálogo e conflito. São Paulo: Cortez.
FREIRE, P., MACEDO, D. (1994) Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

NOTA: Artigo publicado pela Moçambrás - Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa - Revista Eletrônica ISSN 1980-7686.
http://www.mocambras.org/


[1] Olívia S.L. Leite é Mestre em Ciências da Educação Desenvolvimento e Políticas Educativas pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa e José B. Duarte é professor associado da mesma universidade.
[2]  De acordo com Thiollent (2000: 63), optamos por uma amostra intencional.
[3] Uma sala de 7,50 m², emprestada pela coordenadora pedagógica, que se deslocava para a biblioteca, enquanto trabalhávamos na (re)alfabetização.
[4]  Deixamos reticências no final da relação de palavras descobertas para lembrar aos educandos que há continuidade; sempre é tempo para descobrirmos novas palavras e acrescentá-las ao quadro.
[5] Este procedimento já é previsto no desenvolvimento da AMPF para crianças. Todos os vocábulos estudados anteriormente devem ser retomados para construir novas fichas de “palavras descobertas”.

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